Uma encenação limpa e modelar, uma interpretação excelente com momentos verdadeiramente surpreendentes na actriz mais nova, um texto miserável do italiano Antonio Tarantino. Autor de que os Artistas Unidos gostam e de que têm encenado vários textos nos últimos anos. Tem os ingredientes que parecem comuns às escolhas dramatúrgicas do grupo ou de Silva Melo, é contemporâneo e fala sobre guerra e miséria humana, ou a miséria humana e a sua guerra, não uma guerra contra a miséria mas uma guerra que vem de fora para dentro, nos atormenta e deixa incapazes, doentes (harold pinter/ tenesse williamns por exemplo).
Não conheço outros textos do dramaturgo pintor italiano. Não sei se tem ou traz um programa mas o texto A Casa de Ramalhah é criminoso de tanta confusão e omissão que nos deixa face a uma situação histórica com mais de sessenta anos, que nunca deixou de se constituir como problema e ocupa o presente de forma atroz. O autor terá escrito a peça há perto de 10 anos, sem conhecer a história do que é conhecido como o conflito israelo-árabe de lá para cá. Em todo o caso, o que se passou nos últimos anos tinha já acontecido nos 50 anos para trás, facto que não altera em nada ou justifica o carácter repugnante do seu texto. E que me questiona sobre a oportunidade dos Artistas Unidas lhe terem pegado exactamente no meio dos longos dias deste verão em que o governo de Israel decidiu bombardear sem dó nem piedade a faixa de Gaza, matando perto de 3000 pessoas, eliminando famílias inteiras, destruindo milhares de casas, escolas, mesquitas, centrais eléctricas. Em gestos de uma brutalidade que ultrapassa os limites do que é suposto ser admissível em cenários de guerra, se acaso estivemos a falar de uma guerra.
Que leu Jorge Silva Melo neste texto que eu não consigo?
A história é a de um pai, uma mãe e uma filha, que viajam de comboio inter-regional pela Palestina fora, as estações de paragem não acabam nunca e a viagem é muito longa. Não percebemos se isso acontece porque são pobres e têm de apanhar o inter-regional (onde as casas de banho nunca têm uma porta que feche) ou se acontece porque Israel condiciona as deslocações de toda a população palestina, dificultando-as ou proibindo-as. Esta tríade familiar vai-se revelando, um homem que sonhou, perdeu os pais e a sua casa com um ataque insraelita, a mulher, mais cínica, perdeu os pais e a sua casa com um ataque israelita, a filha, a mais nova de cinco, os outros foram "entregues" à organização, activista dum grupo de resistência que não tem nome mas é apresentado como a organização. A Organização lê o Corão, acredita na vitória não porque ela é justa ou porque parece justo que as pessoas não sejam exiladas das suas casas e terras mas porque o seu deus é maior do que o dos outros. A Organização que viola a filha antes de a introduzir no seu círculo de acção. A Organização que levou os outros quatro filhos e não lhes disse mais nada sobre o seu paradeiro. A Organização que entrou na casa deles a meio da noite e portou-se pior que os da Mossad. Não revelo o resto da história e valeria a pena para provar pelo absurdo como tudo o que o autor descreve sobre a "organização" é do domínio do efabulatório, não corresponde a nenhuma investigação fundamentada e portanto serve de propaganda a quem se tem ocupado durante as últimas décadas a branquear e a desculpar os sucessivos crimes de Israel. Há várias organizações ou grupos de resistência na Palestina.
O epílogo da peça, antes de fazer uma incursão pelo mais banal e cliché tour edipiano da filha que se sentiu abusada pelo olhar do pai quando um dia surpreendeu o seu corpo nu (não bastava já tudo ainda era preciso bater mais no velhinho - como se no momento de deixar a vida esses momentos fossem os iluminadores da nossa existência), é magnânimo: "deus não existe e a guerra é absurda, não há lados, estamos todos do mesmo lado, patati patatá." Não estamos todos do mesmo lado. Não se pode estar de outro lado que não o da Palestina e de todos os povos acossados e espoliados por Israel. Pode-se defender um só Estado como solução futura, com os dois povos dentro dele, em igualdade de circunstâncias. Para garantir os direitos dos que nos sessenta anos se juntaram e nasceram ali também do lado de Israel. Mas não se pode em caso algum rejeitar a verdade evidente de que há um povo que foi espoliado, obrigado a tornar-se refugiado nos países em redor (sem direitos políticos e económicos), foi executado, torturado, e que continua a sê-lo com a impotência das organizações internacionais, de que o nosso país faz parte, elas próprias servindo propósitos bem distintos dos da manutenção da paz.
Um texto destes é criminoso na medida em que nos atira areia para os olhos, inventando situações sobre eventuais organizações de terroristas, relativizando os crimes de Israel nesta façanhas da criação de um terrorista, se é tudo tão mau mais vale apanhar o tomate na planície de Tamâ durante séculos, se os isrealitas até nos pagam melhor do que os árabes (elidindo a questão de que a planície foi tomada roubada aos árabes palestinos). Que interessa se para a jovem deus existe ou não se ela está a lutar pela libertação do seu país e pela dignidade da sua família? Mais uma vez, a atirar-nos areia para os olhos fazendo-nos crer que se trata de uma questão religiosa. Um texto que nos atira areia para os olhos é um texto criminoso porque alimenta e compactua com as mentiras ditas e escritas por Israel e pelos EUA. Não compreendo porque Jorge Silva Melo resolveu pegar nele e levá-lo à cena. Não compreendo como estes três bons actores decidiram dar-lhe o seu corpo e energia.
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