A multidão que tomou as ruas do México e de outros lugares do mundo exigindo respostas do governo sobre os 43 estudantes do secundário desaparecidos são homens e mulheres corajosas. Para além disso são parte do único exército que poderá defrontar e vencer a nova ordem mundial capitalista.
Em 2011 Angélica Liddell trouxe a Lisboa a desmesurada e assombrosa peça
A Casa da Força. Peça que ganhou em Espanha, de onde a actriz e encenadora é natural, o
Prémio Nacional de Literatura Dramática 2012. Neste texto Liddell dá-nos conta do feminicídio que ocorrre em Ciudad Juarez desde cerca de 1990.
"Dor, humilhação, violência. Nas suas peças, as vítimas são frequentemente mulheres. É aliás esse o caso em La casa de la fuerza.
Falam-me às vezes de feminismo mas, como já disse, não tenho a sensação de pertencer a um grupo, de aderir a uma ideologia. Por outro lado, tenho plena consciência de ser mulher, isso sim. Tenho mesmo orgulho em ser mulher. Tal como tenho consciência da mortalidade ou da dor, tenho consciência – uma brutal consciência – de ser mulher. Não posso evitar sentir-me mulher. Está enraizado em mim, não posso desfazer-me disso. E isso implica suportar uma série de coisas, como estes pequenos rituais de humilhação que nos são impostos pelo simples facto de sermos mulheres. É para mim inultrapassável. Tenho então de transformar a dor noutra coisa qualquer: uma coisa bela. Não que eu encontre beleza no horror, mas preciso de transformar o horror para sobreviver".
No final da peça entram em cena mulheres mexicanas que relatam as experiências da perda de filhas muito jovens, violadas e assassinadas. Muitas delas encontradas pelos familiares que as vêm desenterrar a campos baldios onde deambulam outros que também procuram, por vezes anos e sem encontrar.
A impunidade a frequência e a atrocidade destes crimes motivou na última década reflexões no campo dos estudos e no campo da luta das mulheres. Ciudad Juarez, com as suas quase 4 mil mulheres assassinadas tornou-se a casa dos horrores do genocídio de género.
O filme
Cidade sob Ameaça, de 2006, ajuda-nos a compreender melhor porque razão isto se passa.
"Sinopse
Graças ao Tratado de Livre Comércio empresas do mundo inteiro montaram fábricas no México, na fronteira com os Estados Unidos. Com mão-de-obra barata e isenção de impostos, estas companhias fabricam produtos a baixo custo, que são vendidos nos Estados Unidos. Nas mais de mil fábricas de Juarez um televisor é fabricado a cada três segundos e um computador a cada sete. As fábricas contratam mulheres, que aceitam salários menores e reclamam menos dos expedientes longos e condições ruins de trabalho. Muitas fábricas operam 24 horas por dia. Muitas mulheres são atacadas a caminho do trabalho ou de casa, tarde da noite ou no início das manhãs. As companhias não garantem a segurança dos funcionários..."
Ciudad Juarez fica na fronteira entre o México os EUA, fronteira fortemente controlada para impedir que milhares de mexicanos se desloquem em busca de trabalho. Os EUA impedem que esta mão de obra entre no país e deslocam as suas fábricas para essa zona de fronteira onde a mão de obra é exponencialmente mais baixa e onde beneficiam de isenções fiscais ao abrigo do acordo NAFTA, sob a cobertura e o apoio dos poderes locais, oligarquias apoiadas pelo narcotráfico: as minorias que lá como cá, ganham com a completa desregulação e exploração. Para as mercadorias não há fronteiras para as pessoas sim.Tudo isto secundado por medidas de expropriação de terras por parte do governo a milhares de agricultores no México (contra as quais se ergueu a revolta zapatista de Chiapas) que obrigou a um êxodo de pessoas sem nada ou muito pouco em busca de um meio de vida em cidades como Juarez.
O filme explica a razão de ser da impunidade destes crimes, como o poder local está apoiado em Washington pelo poder económico de tal forma que o trabalho jornalístico sobre as mortes da personagem principal é censurado no jornal americano para onde trabalha. De tal forma, e já fora do filme, que "
acadêmicos quando tentam expor também suas opiniões, correm o risco de serem censurados, como ocorreu com Rita Segato em 2005 no momento que foi até Juárez com o compromisso de permanecer por nove dias para participar de um fórum sobre os feminicídios ocorridos. Tal evento foi interrompido por uma série de acontecimentos que culminaram, no sexto dia, com a queda do sinal de televisão a cabo na cidade inteira justamente no momento em que a antropóloga iria expor a sua versão dos crimes em uma entrevista com a jornalista Jaime Pérez Mendoza (SEGATO, 2005, p. 266). Após isso, Segato se viu obrigada a sair imediatamente da cidade, pois o corte de sinal da TV era um aviso de que ela já teria ido longe de mais com as suas versões acerca dos fatos" [artigo Ciudad Juárez: a cidade do silêncio
por Victor Henrique da Silva Menezes]
O presidente da câmara da zona de Guerreiro que mandou executar os estudantes em 26 de Setembro deste ano pertence a esta oligarquia. Os manifestantes sabiam-no e era por isso que protestavam.
"Como morreram e onde estão os corpos
Segundo a Procuradoria do México, quando o prefeito soube da manifestação, ele ordenou à polícia que interceptasse os veículos. O intuito era evitar que os distúrbios interrompessem um discurso de sua mulher, María de los Angéles Piñeda, diretora de uma organização de proteção à criança. Houve confronto com as forças policiais e seis civis morreram. Alguns estudantes conseguiram fugir, mas 43 deles foram dados como desaparecidos.
As investigações federais mostram que os 43 estudantes foram detidos e levados pela polícia. No entanto, eles não foram encaminhados à delegacia, mas sim entregues a representantes dos Guerreros Unidos, um dos cartéis que comanda o tráfico de drogas no Estado. Amontoados em três veículos, os jovens foram levados ao lixão do município de Cocula. Segundo pistoleiros ouvidos pela procuradoria, cerca de 15 estudantes chegaram ao local mortos por asfixia. Os sobreviventes foram executados" [
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